Indígenas Kaixana, no Amazonas, denunciam garimpo ilegal em seu território
Na comunidade São Francisco, localizada no município de Tonantins, no estado do Amazonas, região do Alto Solimões, indígenas do povo Kaixana enfrentam o desmatamento e ameaça de contaminação de mercúrio e dejetos promovido pela empresa Cerâmica Tonantins, registrada no nome de Abimael Oliveira, filho do prefeito do município, Francisco Sales de Oliveira (Republicanos). Na comunidade também vivem indígenas Tikuna e Kokama e famílias de ribeirinhos. Lideranças Kaixana relataram que dejetos da produção de tijolos e dos resíduos da atividade do garimpo dentro de uma área que faz parte do território indígena, à margem do rio Tonantins, poluem a água e prejudica o manejo de pirarucu da comunidade. O igarapé Gavião, que passa por trás da comunidade, parou de ser utilizado por causa da instalação de uma draga de garimpo para extração de ouro.
A comunidade São Francisco é um dos inúmeros territórios indígenas do país que, embora seja originária, ainda não foi demarcada. Na verdade, ela continua na fase de “qualificação” pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2016. A “qualificação” é uma fase incerta, na qual a Funai ainda não instituiu o Grupo Técnico (GT), criado para dar início aos estudos sobre a terra indígena. Agora, a esperança os moradores da comunidade, que eles denominam de Terra Indígena Aldeia Kaixana São Francisco, seja incluída na lista de demarcação na gestão da Funai do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
“Com a presença desses garimpeiros, a comunidade vai ficando mais poluída. Ela depende da água dos peixes daqui dos igarapés, do rio. Muitos moradores estão bebendo a água do igarapé e o impacto vai ser muito grande para nós comunitários aqui”, alerta Edilene Lopes, vice-cacica da comunidade São Francisco, onde vivem populações indígenas e não indígenas.
“[O garimpo] afeta muito porque a água que sai do minério cai no igarapé, que é pequeno, e esse igarapé sai no rio Tonantins que passa na frente da comunidade. A terra é indígena e o garimpo é dentro da área”, complementa.
São Francisco é uma das áreas onde vive o povo Kaixana ao longo do rio Solimões. O território fica hoje distribuído nos municípios amazonenses de Japurá, Santo Antônio do Içá, além de Tonantins. Em Tonantins, a única demarcada é a TI São Sebastião, homologada em 2015.
Segundo a Edilene Lopes, somente a demarcação, pela qual lutam desde 2007, vai ajudar a combater o avanço do garimpo. Por enquanto, os indígenas são respaldados apenas pela própria mobilização e denúncia às autoridades.
“O que nós sabemos é que a empresa está registrada no nome do filho do prefeito. Quem estava administrando é esse filho dele, Abimael, e quem estava também trabalhando com o minério dentro da área é o outro filho do prefeito conhecido como Neto”, aponta Edilene, que não descarta o envolvimento de outras autoridades do município.
A prova de que o igarapé do Gavião já está contaminado por mercúrio, para os indígenas, foi o desvio da água para fora do açude do prefeito desde que as atividades garimpeiras começaram. Em reunião das associações com a população a respeito dos efeitos do garimpo, médicos também relataram aumento no número de casos de diarréia e coceira, realizada em 18 de janeiro de 2023.
Josias Lopes, presidente do Grupo de Manejadores de Tonantins e morador de São Francisco, conta que os garimpeiros fizeram um canal com a máquina e desviaram o igarapé para fora do açude e jogaram muito abaixo do terreno deles.
“Essa água passa toda em frente da nossa comunidade, onde o pessoal toma banho. O igarapé foi todo contaminado. Eu até avisei o pessoal [moradores da comunidade] para não tomarem banho porque o negócio está sério”, afirma Lopes.
O município de Tonantins, que fica no sudoeste do Amazonas, é vizinho de uma cidade famosa pela presença do garimpo e envolvimento da prefeitura com a prática ilegal: Jutaí. Os garimpeiros avistados pelos moradores, vieram desse município, que em 2022 teve seu prefeito preso por envolvimento no esquema de ouro.
“Eles estavam vindo de Jutaí, onde nós sabemos que tem muitos mais garimpeiros do que aqui e tinha outros garimpeiros pretendendo vir comprar terrenos, mas como nós fizemos reunião aqui, nós concordamos com a comunidade que nós não vamos aceitar nenhum tipo de garimpeiro aqui dentro”, denuncia Edilene.
A instalação e início da exploração na comunidade já tem atraído o interesse de mais garimpeiros enquanto os órgãos não entram em ação. “Quando souberam que tinha dado ouro, tinha muita gente querendo vir para cá de outros lugares e outros municípios, então com isso nós temos medo de acontecer uma invasão maior aqui”, alerta a cacica.
A Amazônia Real tentou falar em dois momentos, através de ligações telefônicas, com Abimael Oliveira, pelo número disponibilizado no CNPJ da empresa. Em uma das vezes, um homem atendeu, mas afirmou que Abimael não se encontrava e logo desligou a ligação. O prefeito Francisco Sales de Oliveira foi contato pelo email que consta no site da Associação Amazonense dos Municípios, mas a reportagem não teve respostas.
Órgãos sem atuação
Em 18 de janeiro de 2023, indígenas e ribeirinhos fizeram uma reunião para falar sobre as ameaças do garimpo com a comunidade e autoridades presentes, dentre eles o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam), representantes da saúde, e o próprio secretário do meio ambiente do município.
“Eles já sabiam da situação mas não tomaram nenhuma atitude, até agora não se manifestaram, disseram que iam fazer documentos e nos procurar. Até agora nada”, explica Edilene. Segundo ela, logo em seguida Abimael Oliveira (filho do prefeito), junto com o secretário de obras do município, Miguel Cooper, foram avistados retirando os equipamentos de garimpo do local.
“Todos tinham conhecimento do que estava acontecendo e eu acredito que tem muito mais gente envolvida nisso, não só eles [parentes do prefeito], mas todos”, explica.
Em 20 de janeiro de 2023, uma carta denúncia enviada pelo Grupo de Manejadores de Pirarucu da Comunidade de São Francisco, Organização Indígena Kaixana, Associação dos Produtores e Manejadores de Lago do Município de Tonantins ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Ministério Público Federal no Amazonas denunciou a atividade de garimpo, e incluiu no documento o aumento de desmatamento feito pela empresa, mas os moradores nunca obtiveram retorno das autoridades.
Outra dificuldade para denunciar encontrada pelos indígenas, é o fato da região estar sem Coordenador Regional da Funai no Alto Solimões, que auxiliaria no envio das denúncias para as autoridades. “Como liderança aqui nós não temos recursos para correr atrás para fazer denúncias”, ressalta Edilene, que afirmou que está sendo se sentindo acuada, com intimidações para ela parar de denunciar.
“Já ouvi comentários que nós não iríamos fazer eles pararem [de garimpar]. Eles têm advogado e nós não, mas [diretamente] para mim nunca falaram nada”, diz.
Empresa de fachada
De acordo com o cacique geral da TI Aldeia Kaixana São Francisco, Daniel Simplício Alves, as tentativas de se estabelecer uma atividade de garimpo na área vem desde 2002, impedidas pela mobilização dos moradores locais. Mas foi em 2021 que a atividade se fortaleceu, até que ano passado uma balsa de garimpo tentou adentrar próximo da comunidade, no igarapé Mapaí, o que fez o cacique acionar a Polícia Federal para retirada dos garimpeiros.
Para Daniel Simplício Alvares, os negócios de Francisco Sales Oliveira dentro da área atraíram mais interessados pelo garimpo, além do próprio prefeito. Segundo ele, a Cerâmica de Tonantins é uma “fachada” para o que já queria se fazer com o terreno: explorar ouro. “É por isso [ouro] que ele comprou o terreno”, diz.
Empresário antes de ser prefeito, Francisco Sales já era um comerciante conhecido na comunidade por trabalhar com todo tipo de serviço: hotelaria, estivas em geral e olaria. Segundo Josias Lopes, a empresa de cerâmica que tem o CNPJ registrado desde 2014, alavancou quando Sales tornou-se prefeito em 2021.
“Depois que ele entrou para prefeito aí que acarretou mesmo para a desordem. Já começou a invadir a beira dos rios, os terrenos das pessoas. Ele vai metendo a máquina. Vai derrubando tudo o que tem pela frente”, explica a liderança Josias Lopes.
Conforme Edilene Lopes, o terreno estava sendo usado 24 horas, de dia era uma empresa de cerâmica, a noite virava um trabalho de garimpo.
“Nós observamos como estava funcionando antes, estava muito ativo todos os dias à noite. Estavam trabalhando lá tirando mesmo ouro e nós vimos, eu vi mesmo”, afirma ela. Desde a reunião entre as associações de indígenas e ribeirinhos em 18 de janeiro de 2023, foi avistada a retirada do equipamento do local, mas ainda teme-se que o garimpo retorne posteriormente após um período inativo.
Ameaça ao manejo
A mesma área onde vem ocorrendo a atividade de garimpo também passou a ser impactada pelo desmatamento. A beira do rio Tonantins, antes com o igapó intocável e lugar de pesca dos ribeirinhos e indígenas, passou a ser convertida em uma grande área desmatada, conforme alertam os indígenas e ribeirinhos. Eles contam que em época de enchente, não se vê mais as árvores deste habitat, que antes servia como refúgio para os peixes. A borda passou a virar um campo desmatado em prol de lenha para ser queimada na olaria.
“É uma situação de você andar nesse rio e de ver como que está a situação do rio após isso [desmatamento]. Vão tirando todo tipo de madeira, de frutíferas, de peixe. Então, é uma situação que não é de agora, já está mais ou menos há sete anos desde que está funcionando essa olaria aqui dentro”, diz Edilene Lopes. A área, segundo a cacica, já chega a cerca de cinco hectares de desmatamento ao redor do terreno do prefeito.
“Isso vai ser um impacto ambiental muito grande e difícil de ser reconstruído porque cada vez esse desmatamento está continuando. Isso vai causar muito [impacto] para nós moradores daqui”, acrescenta Lopes.
Na comunidade São Francisco, a população de quase 2 mil pessoas é apoiadora do manejo de pirarucu. O ribeirinho Valdenor Magalhães, um dos coordenadores do Grupo de Manejo de São Francisco, que tem como objeto de estudo o pirarucu no seu mestrado, explica que o garimpo passou a ser uma ameaça ao manejo do peixe que chegou a quase extinção na área e agora está com a população crescendo desde 2018. Para ele, corre o risco dos manejadores perderem a única renda e forma de gerar alimento.
“Como é que você vai manter a qualidade de um pescado sabendo que tem uma área de garimpo ativa dentro de uma área de manejo? O mercúrio é um metal bioacumulante, então ele vai passando de um peixe menor para um maior. Até chegar no pirarucu, que é um bicho topo de cadeia, a gente já tem um acúmulo muito grande. São questões que podem ser muito prejudiciais”, explica.
Para o coordenador, é urgente que as autoridades do Amazonas deem atenção para o caso e respostas sobre a denúncia já protocolada há mais de dois meses. O medo é que o garimpo cresça e chegue a casos mais extremos como no caso da Terra Indígena Yanomami. Segundo Valdenor, a prática ilegal não é por desconhecimento dos malefícios do garimpo, mas pela ganância.
“O lucro é o que importa, não importa o que vai acontecer com quem sobrevive, com quem depende do rio para pescar, com quem depende da terra para plantar, para cultivar seu alimento”, diz Valdenor, que é natural de Tonantins.
Magalhães solicita, assim como no documento de denúncia, uma investigação a quem promove garimpo ilegal. “Em Tonantins é preciso uma investigação sobre essas pessoas que estão levando essa atividade para lá, quem são os responsáveis que estão levando? Porque se chegou é porque alguém levou, alguém está praticando a atividade”, afirma.
Histórico de ilegalidade
Não é a primeira vez que Francisco Sales é suspeito de cometer irregularidades e ilegalidades no seu mandato envolvendo seus filhos. Em 2021, o Ministério Público do Estado do Amazonas recomendou que ele retirasse a filha Karina de Souza Oliveira do cargo de secretária municipal de Finanças. No mesmo ano foi aberto um inquérito pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar irregularidades na substituição de agentes comunitários de saúde.
A ponte Macána, que dá acesso à comunidade São Francisco, aguarda desde 2020 para ser feita. O atual prefeito, responsável por dar continuidade à obra desde 2021, nunca finalizou a construção, o que levou a morte de um adolescente em dezembro de 2022 após cair de tábuas apodrecidas.
Edilene Lopes cita que, ainda existem muitas outras irregularidades que precisam ser fiscalizadas.
Para o cacique Daniel Simplício, a possibilidade de demarcação da terra indígena levou o prefeito a ficar recluso, apesar de ter “comprado” terrenos dentro do território indígena.
“O medo dele [prefeito] é isso [demarcação de terra], porque o novo governo do presidente Lula já anunciou que vai ter demarcação, incluindo nossa área que já está em fase de qualificação, agora vai ser demarcada. Ele [prefeito], está com medo e nem fala mais nada, de primeiro ele ameaçava nós, mas agora ele está todo fechado”, conta. “Ele me ameaçava até de morte, ele não era nem prefeito quando ameaçava. O que ele falou para mim foi que um dia ele vai acabar com minha vida”, revela a liderança.
O que dizem as autoridades
O Ministério Público Federal (MPF) informou as medidas que estão sendo tomadas referentes à exploração e desmatamento na região. Em resposta, o MPF disse que o procedimento está tramitando em sigilo e por isso não poderia informar outros detalhes da ação.
“O MPF informa que recebeu denúncia sobre a situação mencionada, o que levou à instauração de procedimento com o objetivo de apurar possível extração ilegal de ouro em propriedade na comunidade São Francisco”, diz a nota.
“Quanto aos demais questionamentos, ainda não conseguimos concluir a pesquisa por conta de problemas técnicos em nossos sistemas. Assim que possível, entraremos novamente em contato”, informou o MPF em sete de março, mas não retornou para responder aos questionamentos pendentes.