Política

MP do Ouro acaba com a farra da presunção da boa-fé no comércio

A “MP do Ouro”, medida provisória que muda as regras para compra, venda e transporte do metal precioso, tem a força para interromper uma histórica cadeia de ilegalidades no Brasil. Assinada na terça-feira (25), pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, a MP segue decisão do ministro do Supremo Gilmar Mendes, que  suspendeu, no dia 4 deste mês, o parágrafo 4º do artigo 39 da Lei 12.844/2013. O artigo criava a figura da “presunção da boa-fé”, que permitia ao comerciante de ouro informar apenas o local onde o metal havia sido extraído. A lei ajudou a “esquentar” toneladas de ouro extraídas de forma ilegal de Terras Indígenas.  

A decisão de suspender, por um prazo de 90 dias, a Lei 12.844/2013 é uma resposta às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 7273, movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Rede Sustentabilidade (Rede), e 7345, de autoria do Partido Verde (PV). Gilmar Mendes espera que nesses três meses o poder público adote um novo marco normativo para a fiscalização do comércio de ouro. Como outras MPs, esta tem prazo de 60 dias, podendo ser prorrogada pelo mesmo prazo, tempo para que o Congresso vote em definitivo as modificações na lei brasileira. 

A criação do novo dispositivo foi coordenada pelo secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira. Agora, o documento será enviado ao ministro Rui Costa, da Casa Civil e, de lá, seguirá para assinatura do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

Como aconteceu?

Nota Fiscal encontrada na casa de Rafael Vieira; segundo a PF, documento indica que ouro da TI Yanomami foi negociado com DTVM (Reprodução)

Aprovada e sancionada no ano de 2013 pela ex-presidenta, Dilma Rousseff (PT), a Lei 12.844 tratava inicialmente de questões relacionadas ao seguro agrícola. Mas um “jabuti” acabou sendo inserido na lei, em proposta do deputado federal por Minas Gerais, Odair Cunha (PT). A expressão “jabuti” na vida política se refere a textos inseridos numa lei que não têm o mesmo teor original. Na época, o projeto passou pela Câmara dos Deputados e não teve repercussão entre ambientalistas e movimentos indígenas.

Com o “jabuti”, o vendedor de ouro passou a utilizar o chamado recurso da “garantia da boa-fé”. Em suma, cabia ao vendedor de ouro preencher uma nota fiscal, em papel, na qual ele mesmo declarava o local onde o metal havia sido extraído. Foi a deixa para que os vendedores passassem a declarar que o ouro procedia de garimpos legalizados. Muito do chamado ouro de sangue Yanomami, por ter sido extraído dentro da Terra Indígena (TI) de Roraima, tomada por uma invasão de mais de 20 mil garimpeiros, acabou sendo “esquentado” como sendo do Pará. A TI Yanomami teve estado de emergência decretado no início deste ano, já no terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a declaração de “legalidade” em mãos, o vendedor negociava o metal com as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), que são empresas autorizadas pelo Banco Central (BC) a fazer esse tipo de transação. Conforme investigações da Polícia Federal, entre 2020 e 2022, a emissão das notas fiscais fraudulentas teria ajudado a “esquentar” nada menos que 13 toneladas de ouro e rendido mais de 4 bilhões de reais aos criminosos.

Detalhes da MP


A jornalista Andréia Sadi, da Globo News e do G1, detalhou trechos da nova MP do Ouro em seu blog, que deve contar com aperfeiçoamento da fiscalização pelo sistema financeiro; controle pela Agência Nacional de Mineração; pelos órgãos de segurança e de lavagem de dinheiro; previsão de pena de apreensão e perdimento em favor da União para o ouro que circular fora dessas regras; e o fim da “presunção de boa-fé” e possibilidade de responsabilização de elos da cadeia de compra e venda de ouro.

“É um passo muito importante que estamos dando agora e, quando a MP do Ouro for totalmente implementada, vai significar um rigor muito maior do que a gente vê atualmente para a extração e comercialização do ouro”, destaca o secretário Marivaldo Pereira, em entrevista à CNN. “Hoje, no Brasil, há menos controle sobre o ouro do que sobre a madeira ou sobre a carne. Com a medida provisória apresentada e já pactuada com todos os órgãos do governo, o indivíduo que for vender o ouro terá uma série de mecanismos de regulação.”

Operação da Polícia Federal

Na terça-feira (25) a PF deflagrou, em Roraima, a operação “Ponte de Ouro”. O objetivo da operação é investigar suspeitos de intermediar a compra de ouro extraído de forma ilegal do Terra Indígena Yanomami (TIY). De acordo com a PF, foram cumpridos oito mandados de busca e apreensão, e bloqueio de bens. Os mandados foram expedidos pela 4ª Vara Federal Criminal da Justiça Federal em Roraima.

Em nota divulgada à imprensa, a PF informou que as investigações foram iniciadas ainda em 2020, quando garimpeiros foram detidos pelo Exército dentro da TIY. Na ocasião, eles informaram à PF para quem vendiam o metal precioso extraído no local. 

Ainda segundo a PF, o inquérito aponta que o grupo teria movimentado o equivalente 30 milhões de reais em um intervalo de quatro anos, usando para isso, empresas de fachada, que não tinham, entre as suas atividades, nenhum envolvimento com mineração. Desde o decreto de emergência na TIY, a PF já realizou várias ações e pelo menos cinco operações que tiveram como objetivo investigar os caminhos do ouro ilegal no estado de Roraima. 

O que dizem as DTVMS?

Edifício Barão do Serro Azul, na Avenida Paulista, onde fica a sede da F.D’Gold; empresa foi a que teve maior rentabilidade em 2020 entre as três DTVMs investigadas (Imagem Google Street View)

As DTVMs são as empresas que comercializam ouro no País. Vendem barras de 50 gramas, 100 gramas e até  1 quilo. Este comércio é autorizado pelo Banco Central. Com as novas decisões do governo e do STF, essa rotina vai mudar. Procurada pela reportagem, a FD’Gold informou que a decisão do STF vem de encontro ao que a empresa defende para o setor: “É uma decisão bem-vinda e que em nada altera o trabalho que é  pautado na ética e na legalidade”. A empresa diz acreditar que a decisão é mais um   passo “dentro do muito que ainda se faz necessário”.

“Nossa empresa tem sido uma voz contundente na defesa da transparência das atividades do garimpo, baseada na certeza de que é o melhor caminho para o Brasil, para o setor e as milhares de pessoas envolvidas na atividade”, diz o diretor de finanças e administrativo da FD’Gold, Anderson Dias. “Atuamos dentro de estritas regras legais, como uma instituição financeira regulada pelo Banco Central e pela legislação vigente. Desta forma, a decisão do STF é uma vitória de nossa histórica pregação”, finaliza Dias.

Para Selma Alexandre Cardoso, representante da Coluna DTVM, a suspensão da lei vai permitir um controle muito mais simples. “Agora vai ser mais fácil porque tem nota eletrônica. Vai ser bem mais fácil o controle”, opina. 

Procuramos também a Carol DTVM, mas até a publicação desta reportagem, a empresa não havia retornado o contato. Já o minerador José Altino Machado, que é diretor da Associação dos Moradores do Alto Tapajós (Amot) e fundador da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal), criticou a decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes.

“Juiz ou julgador algum com toga pode dissertar e diversificar sobre leis, ele apenas as cumpre. E é isso que ele deveria ter feito, só cumprido. Não cabe a ele (Gilmar Mendes) nenhuma modificação legal, isso é exercício do Congresso Nacional”.  

Receita Federal e Banco Central

A reportagem procurou a Receita Federal para perguntar o que mudaria, na prática, na dinâmica da relação de compra e venda de ouro pelas DTVMs, e como o órgão atuará pelos próximos 90 dias. A Receita Federal disse que “não comenta decisões judiciais”.

O mesmo questionamento foi feito ao Banco Central, que é quem autoriza o funcionamento das DTVMs, e a resposta foi semelhante. “O Banco Central não comenta decisões judiciais ou ações em curso na Justiça”, disse a nota, completando que o BC “apoia iniciativas que possam aprimorar o marco legal para a fiscalização do comércio do ouro tais como, por exemplo, a revogação da presunção de legalidade na aquisição do ouro por instituição financeira e a exigência de nota fiscal eletrônica”. O Banco Central também disse apoiar a criação de “mecanismos privados que aumentem a rastreabilidade da cadeia produtiva do ouro”.

Nova corrida do ouro


Incentivados pelo governo federal na gestão do ex-presidente, Jair Bolsonaro (PL), e também pelo governador de Roraima, Antonio Denarium, que chegou a sancionar uma lei estadual que impedia a destruição de equipamentos usados em garimpo, a TIY sofreu a maior invasão de sua história nos últimos quatro anos.

No garimpo clandestino, que persiste na TIY, um vídeo obtido com exclusividade mostra que, apesar de toda operação montada para expulsar os garimpeiros do local, a exploração de minérios continua, só que não mais à luz do dia e, sim, à noite. Durante o dia, o maquinário usado pelos garimpeiros fica escondido na floresta.

Os garimpeiros ignoram sumariamente as ordens governamentais de deixar o território e não temem operações por um motivo muito simples: a alta do ouro. Hoje em dia, investir em ouro rende mais que a poupança e o Ibovespa. Só para se ter uma ideia, nos últimos 12 meses o metal precioso rendeu 8,56% até março. Desde o começo do ano, a alta foi de 4,97%.

Essa alta não se restringe ao mercado brasileiro, muito pelo contrário, se consolida como uma tendência internacional. No ano passado, os bancos centrais de todo o mundo atingiram o maior volume de compra de ouro registrado desde 1967. Pelo menos 673 toneladas foram compradas pelas instituições. O ponto mais alto foi atingido no terceiro trimestre do ano passado, quando os Bancos Centrais gastaram, juntos, o equivalente a 20 bilhões de dólares com a aquisição do metal precioso.